Há uma conhecida e estereotipada misoginia clerical, que “blinda” as mulheres em posições de marginalidade privando-as de qualquer relevância institucional, com o agravante das boas maneiras e dos tons afáveis que mistificam e ocultam os conteúdos sexistas.
A reflexão é de Anita Prati, professora de Letras no Instituto Estatal de Educação Superior “Francesco Gonzaga”, em Castiglione delle Stiviere, Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 25-06-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Luigi Maria Epicoco está entre as assinaturas mais conhecidas do campo editorial religioso contemporâneo. Entre suas últimas publicações, está um livro que se insere em um filão – o da relação “mulheres e Bíblia” – de extraordinária riqueza hermenêutica. O título do pequeno livro de Epicoco, de pouco mais de 100 páginas, é em si mesmo programático: “Le affidabili. Storie di donne nella Bibbia” [As confiáveis. Histórias de mulheres na Bíblia].
Livro "As confiáveis. Histórias de mulheres na Bíblia", de Luigi Maria Epicoco. (Foto: Divulgação)
Repasso algumas notas de apresentação na internet. Uma diz assim:
“Quando pensamos nos relatos bíblicos, muitas vezes o nosso imaginário é predominantemente masculino. Na verdade, em cada história, sempre há uma referência feminina que não serve apenas de coreografia, mas muitas vezes representa a chave de leitura vencedora; de fato, as mulheres da Bíblia parecem ser as mais ‘confiáveis’ na realização da História da Salvação.”
Outra diz:
“Talvez pensemos erroneamente que as mulheres na Bíblia desempenham um papel marginal. Na realidade, é exatamente o contrário, porque elas representam o grande pano de fundo ‘confiável’ dentro do qual a história da salvação se torna verdadeiramente possível.”
Fico um pouco perplexa. Muitas vezes o nosso imaginário é predominantemente masculino... Talvez pensemos erroneamente que as mulheres na Bíblia desempenham um papel marginal...
Evidentemente, o marketing religioso se refere a um público médio que tem pouca ou nenhuma consciência do imponente trabalho que, há décadas, as teologias feministas vêm realizando para desenterrar as jazidas de sentido enterradas nas filigranas das Escrituras em relação à presença e ao papel das mulheres na história da Salvação. E essa é a primeira perplexidade.
Na verdade, em cada história, sempre há uma referência feminina... Na realidade, é exatamente o contrário... Segunda perplexidade: parece que Epicoco foi o primeiro a pôr a mão nesse filão aurífero… O que dizer? Talvez faça parte da prática promocional apresentar cada nova publicação sob a marca do slogan “o-primeiro-livro-que”, como se não houvesse um ontem no qual seja possível se reconhecer e ao qual seja preciso reconhecer.
Mas então as minhas perplexidades se traduzem em um desconforto indignado quando, ao ler uma entrevista concedida pelo jovem teólogo ao blog Alzo gli Occhi verso il Cielo, me deparo com estas palavras:
“A grande polêmica sobre o papel das mulheres na Igreja me incomoda muito, porque é como se tivéssemos que dar espaço para aquelas que têm todo o direito de considerar que já têm esse espaço e o conquistaram por meio dessa confiabilidade de que eu falava antes."
“No livro, eu usei uma imagem. No fundo, quando olhamos para um quadro, somos atraídos pelas figuras que estão na primeira fila, mas na realidade essas figuras só são compreensíveis porque há um pano de fundo às suas costas, que dá significado aos personagens da primeira fila."
“Pois bem, as mulheres são o grande pano de fundo de sentido dentro do qual nenhum personagem que está na primeira fila poderia encontrar significado, senão por meio delas. Atrás dos grandes homens da Bíblia, sempre há grandes mulheres. Na Igreja, os acontecimentos mais importantes sempre tiveram figuras sábias como pano de fundo.”
Com certeza, não fui a única que se sentiu desconfortável diante dessas frases; o “incômodo” referido por Epicoco estimulou um comentário articulado de Andrea Grillo que, por meio de carta aberta, entre outras coisas, sublinhou que a imagem metafórica do “espaço do pano de fundo”, utilizada por Epicoco para reiterar que a posição marginal das mulheres na Bíblia e na Igreja é funcional para conferir sentido às personagens que se encontram na linha da frente, nada mais é do que uma reproposição em forma de metáfora da secular pregação eclesiástica que identificava o doméstico e o privado – o invisível, o oculto, o silente – como espaço do feminino, em contraposição ao público, isto é, ao primeiro plano, ao visível, ao que tem autoridade, como lugar próprio dos homens.
Apesar daquele título disruptivo – “As confiáveis” –, Epicoco insere-se, assim, na conhecida e estereotipada misoginia clerical, que “blinda” as mulheres em posições de marginalidade privando-as de qualquer relevância institucional, com o agravante das boas maneiras e dos tons afáveis que mistificam e ocultam os conteúdos sexistas.
Mulheres no pano de fundo, portanto. Mulheres nunca protagonistas em primeiro plano. Ontem devido à sua não confiabilidade, hoje apesar de sua confiabilidade. Mas quem disse que as mulheres devem ficar no pano de fundo?
Se houve um ponto sem retorno na hermenêutica bíblica, por mais desconhecido que seja para a maioria, ou desconhecido ou mal reconhecido, este é sem dúvida o livro “The Woman’s Bible” [A Bíblia da mulher], de Elizabeth Cady Stanton, publicado no fim do século XIX. É graças à obra de Cady Stanton que hoje a Bíblia não pode mais ser lida como um livro “neutro”, ou seja, desprovido de vestígios das mãos masculinas que a escreveram.
Cady Stanton enfocou o caráter fundamentalmente androcêntrico da Bíblia, tanto em termos de linguagem quanto de marco conceitual.
Evidenciando as estruturas patriarcais que relegavam as mulheres a uma posição de segundo plano em relação aos homens e as apresentavam por meio de narrativas que as concebiam como marginais, invisíveis e insignificantes – em relação não só à religião, mas também à cultura e à história humanas –, Cady Stanton chegou a afirmar que os textos misóginos contidos na Escritura deviam ser considerados não como palavra de Deus, mas como palavra dos homens.
O trabalho pioneiro de desestruturação levado a cabo pela pensadora estadunidense, imprescindível figura de referência na história da emancipação das mulheres e dos escravos, contribuiu para evidenciar as dobras androcêntricas da história da redação e da tradição dos textos bíblicos, o acentuado androcentrismo ativo na formação do cânone e em muitas traduções, além da organização patriarcal das instituições religiosas e do nosso próprio modo de pensar, de viver e de crer.
Como lembra Elisabeth Schüssler Fiorenza, "as conclusões interpretativas advindas de 'A Bíblia da Mulher' ainda determinam os parâmetros da hermenêutica bíblica feminista e também as pesquisas histórico-exegéticas sobre o tema 'mulher na Bíblia'".
“Se as feministas estadunidenses do fim do século XIX não tivessem reivindicado o direito das mulheres não apenas de examinar criticamente as interpretações da Bíblia para desmascarar sua carga opressiva contra as mulheres, mas também de ler criticamente o próprio texto, nunca teria explodido o interesse pelas figuras femininas que pontilham a história bíblica: quando a Bíblia se tornou também das mulheres, o protagonismo feminino dentro do próprio texto sagrado emergiu com toda a sua evidência, e as mulheres da Bíblia foram libertadas do esquecimento e, sobretudo, da mistificação.”
Marinella Perroni escrevia isso há 20 anos, em um texto com o emblemático título: “Cent’anni di solitudine: la lettura femminista della Scrittura” [Cem anos de solidão: a leitura feminista da Escritura]. Os 100 anos de solidão são os que separam a publicação da “Bíblia da mulher”, em 1895, e o documento da Pontifícia Comissão Bíblica para a Interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993 – documento que, ao retirar o interdito, legitimava também a exegese feminista como possibilidade interpretativa das Escrituras válida do ponto de vista eclesial.
Durante aqueles primeiros 100 anos, as mulheres cristãs puderam começar a se defrontar com a Bíblia, a se reapropriar dela, a ouvir a Palavra pronunciada não só para elas, mas também por meio delas.
Perroni constatava, porém, não sem amargura, que o trabalho de exegese realizado pelas mulheres ao longo daqueles primeiros 100 anos solitários, ao invés de ser considerado pelo mundo exegético italiano como "motivo de interlocução crítica", havia sido considerado simplesmente como uma "área protegida da pesquisa teológica, uma espécie de apêndice reservado apenas às mulheres."
Vinte anos se passaram desde aquele texto, e a pergunta inevitável é: mudou alguma coisa na cultura teológica italiana desde então? Talvez algo sim: um livro como o de Epicoco testemunha que a área protegida também se abriu a presenças masculinas, que, por meio de um exercício de deslocamento do olhar nada óbvio, abordam o texto bíblico a partir de um ponto de vista “outro”. Hoje teólogos e biblistas também se ocupam das mulheres na Bíblia, falam sobre elas e as estudam. Mas a interlocução crítica em que ponto está?
Parece evidente que, enquanto nos limitamos a nos mover dentro do campo das Escrituras, não há mais grandes dificuldades. As dificuldades aparecem no momento em que a hermenêutica bíblica feminista se torna um prelúdio para uma reconsideração total da estrutura teológica e religiosa, não para tematizar uma passagem de poder, mas para elaborar uma nova perspectiva teórica de conjunto, para repensar totalmente o universo religioso com seus símbolos e suas linguagens, seus conteúdos e suas normas, suas promessas e seus ritos.
Se, ao tocar no tema “mulheres e Bíblia”, começa a pairar no ar a questão dos papéis e dos ministérios eclesiais, inevitavelmente alguns começam a se incomodar. Mas, como escrevia Grillo em sua carta aberta, “por mais que se fale de confiabilidade, ainda que com razão, se não nos defrontarmos com o exercício da autoridade, não prestaremos um serviço à razão teológica e à dignidade das mulheres”.
No entanto, esse trabalho exegético das mulheres, mais do que centenário, deveria ter levado a uma aquisição sólida e compartilhada de alguns dados históricos, antes mesmo que teológicos. As cristãs da primeira geração eram discípulas de Jesus de pleno direito em uma comunidade de iguais, batizadas e lideranças de comunidades, missionárias e evangelizadoras. Mas o curto tempo do discipulado de iguais, subversivo em relação às estruturas familiares e culturais judaicas tradicionais dominadas pelo patriarcado, não durou mais do que uma geração.
A institucionalização da Igreja coincidiu com sua adaptação à ética greco-romana e com a assunção dos códigos pessoais e familiares da cultura então dominante. O preço da legitimação e da institucionalização foi pago pelas mulheres da segunda geração cristã, que, reconduzidas a tarefas secundárias, foram banidas dos papéis eclesiais e marginalizadas pelos séculos seguintes.
Uma vez domesticada a proposta disruptiva de Jesus do discipulado de iguais, Aristóteles estava pronto para permear o pensamento e a vida cristã. Ora, para entender quais eram as referências culturais da Igreja nascente em sua aproximação ao mundo greco-romano, pode ser útil afastar-se do campo de investigação propriamente bíblico e entrar, em vez disso, no terreno da antropologia e da filosofia.
O recente trabalho de Giulia Sissa, Distinguished Professor de Ciências Políticas e Literatura Clássica e Comparada na Universidade da Califórnia em Los Angeles, intitulado “L’errore di Aristotele. Donne potenti, donne possibili, dai Greci a noi” [O erro de Aristóteles. Mulheres poderosas, mulheres possíveis, dos gregos até nós], adentra com profundidade, com os textos em mãos, nas páginas aristotélicas que construíram o fundamento das construções de pensamento que, ao longo dos séculos, continuaram batendo de modo disseminado na tecla da inferioridade feminina.
Livro "O erro de Aristóteles", de Giulia Sissa. (Foto: Divulgação)
O estilo de Sissa é rigoroso, mas, ao mesmo tempo, intrigante e agradável, às vezes até divertido ao repropor as palavras textuais de pensadores que, a partir de Aristóteles, ao longo dos séculos, de várias maneiras e por várias razões, gradualmente se comprometeram a demonstrar que as mulheres, coitadinhas, não conseguem ser como os homens e que a mulher está fazendo água por toda a parte.
Basta um silogismo simples e rigoroso para entregar as mulheres à inferioridade, aos bastidores, ao pano de fundo. Contra Platão que, na “República”, postulava a igualdade entre os sexos e uma educação paritária para homens e mulheres, Aristóteles parte de um pressuposto de caráter biológico que põe imediatamente fora de questão qualquer postulado de igualdade.
Os homens são quentes. O calor é thumos, isto é, ardor, e só a partir do thumos é que pode se desenvolver a andreia, isto é, a coragem, ou seja, a virtude indispensável para combater, governar, manter-se firme na decisão tomada e revestir-se de papéis de primeiro plano na cidade.
As mulheres são exatamente o oposto. São frias, desprovidas de thumos e, portanto, desprovidas de andreia. Não é que não raciocinem – aliás, para Aristóteles, as mulheres são até mais inteligentes e racionais do que os homens, justamente devido à sua frieza –, mas, não tendo thumos e coragem, são incapazes de tomar decisões. E, quando tomam uma, não conseguem se manter firmes na decisão tomada. Não são confiáveis.
Eis, então, um silogismo impecável: as mulheres são desprovidas de thumos; para governar e ficar no centro da cidade é preciso thumos; portanto, as mulheres devem ficar em casa, no canto mais retirado e escondido, silenciosas e obedientes ao homem de plantão, seja ele pai ou marido.
Tomás percorre as vias do aristotelismo a toda a velocidade e aumenta a dose com sobra – não só a mulher é desprovida de thumos, não só ela é inconstante e não confiável, mas também é um homem fracassado, com algo de defeituoso, ocasional e irracional: femina est aliquid deficiens et ocasionatum.
Segue-se que naturaliter femina subiecta est viro, quia naturaliter in homine magis abundat discretio rationis. O homem é por natureza mais dotado intelectualmente, leva vantagem em todos os campos que dizem respeito ao pensamento, é mais inteligente, mais clarividente e competente.
Para Aristóteles, a mulher mais corajosa é um homem covarde; para Tomás, a mulher mais inteligente é um homem estúpido. Enquanto para Aristóteles a invalidez da mulher diz respeito apenas à execução, à concretização de projetos que, aliás, ela é racionalmente capaz de julgar corretamente, para Tomás a mulher não é capaz de realizar nenhuma tarefa, ela se perde, é incapaz de se mover no mundo sem o apoio masculino.
Silogismo tomista: Deus, no desígnio da natureza, criou o homem dotado de superioridade cognitiva (discretio rationis). Para governar, dirigir, comandar, é preciso essa superioridade cognitiva. Por isso, só o homem pode comandar, dirigir e governar.
Corolário: o homem é o chefe da mulher, e é justo que assim seja, pois, graças a Deus, o homem é realmente mais dotado do que a mulher. A mulher é um ser auxiliar, feito para o serviço, para ajudar, auxiliar; ela é excluída dos papéis diretivos e de responsabilidades, só pode viver em condição de subordinação.
Depois vem Rousseau, um dos intelectuais mais influentes do Iluminismo. No livro quinto de seu romance pedagógico “Emilio”, quando ele passa a falar da educação de Sofia, a companheira de Emilio, nem mesmo o pensador genebrino consegue abandonar os caminhos conhecidos e seguros do silogismo aristotélico.
Et voilà: em tudo o que concerne ao sexo, a mulher e o homem têm relações por toda a parte e diferenças por toda a parte. Tudo o que eles têm em comum é próprio da espécie; tudo o que eles têm de diferente é próprio do sexo.
Dessa diversidade nasce a primeira diferença identificável no campo das relações morais entre um sexo e o outro. Um deve ser ativo e forte; o outro, passivo e fraco. Tendo estabelecido esse princípio, decorre que a mulher é feita especialmente para agradar ao homem.
Se a mulher é feita para agradar e para ser subjugada, ela deve se tornar agradável ao homem em vez de provocá-lo: sua força está em suas graças.
Outros corolários dessa demonstração lógica: o lugar natural da mulher é a casa; sua principal ocupação, o cuidado dos filhos; o fato de ela ter a mesma educação de um homem é um absurdo que só Platão podia conceber.
Se as mulheres realmente devem ser educadas, visto que, no mundo como ele é, para todos já é indispensável um pouco de cultura, elas devem ser educadas de maneira que isso sirva para reforçar as prerrogativas “naturais” de seu sexo: não podendo sejam elas próprias juízas, devem receber as decisões dos pais e dos maridos como se fossem as da própria Igreja.
Não façam de suas filhas teólogas e pensadoras; não as ensinem sobre as coisas do céu, exceto aquilo que serve à sabedoria humana.
O que lhes é ordenado é bom, o que lhes é proibido é mau: as meninas não devem saber nada mais do que isso.
As mulheres são capazes de um sólido raciocínio? Vão cultivá-lo frutuosamente? E será útil para as funções que lhes são impostas? É compatível com a simplicidade que lhes convém?
Hoje, contra Aristóteles, Tomás e Rousseau, a Igreja (finalmente) descobriu que as mulheres não são diferentes dos homens por serem mais frias, menos corajosas, menos inteligentes e mais fracas. Ela descobriu que as mulheres podem ser, e têm demonstrado ser, na história da Salvação, sábias e confiáveis, até mais confiáveis do que os homens.
Depois de ter “vendido” durante séculos como mensagem de Jesus aquilo que, ao invés disso, era um resquício do pensamento aristotélico, não chegou o momento, talvez, de abandonar a leitura preconceituosa do feminino, que vê como uma característica decisiva das mulheres – frias, desprovidas de coragem, pouco inteligentes e mais fracas do que homens – a sujeição e a falta de autoridade?
O incômodo de Epicoco diz que a Igreja ainda não consegue. Mesmo que a premissa maior do silogismo aristotélico tenha se convertido em seu contrário (quanto thumos em uma mulher!), a conclusão permanece igual e inatacável. Que as mulheres permaneçam no pano de fundo e lá fiquem contentes e satisfeitas, pois agora nós lhes reconhecemos esse papel fundamental de segundo plano! O que mais querem essas benditas mulheres, sempre provocando polêmica?!
Em seu artigo de 20 anos atrás, que vale a pena reler, Marinella Perroni sublinhava que o feminismo, com sua vontade de questionar novamente a pretensão masculina de ocupar o centro da cena e do universo, trouxe consigo uma revolução que vai muito além da própria disputa pela ocupação do centro.
A questão urgente levantada pelo pensamento das mulheres na Igreja não é tanto quem ou o que deve estar no centro, quem ou o que deve estar em primeiro plano ou no pano de fundo. A verdadeira questão é se o universo religioso não pode ser senão policêntrico ou, até, se ele não é plausível apenas desprovido de um centro.
Talvez esse seja o pensamento a se pensar e a se repensar, longamente e bem, se chamar-se cristãs e cristãos realmente significa deixar-se tocar por Aquele que disse de si mesmo não “Eu sou o centro”, mas sim “Eu sou o caminho”.
Marinella Perroni, “Cent’anni di solitudine. La lettura femminista della Scrittura”, (Servitium 150, 2003).
Elisabeth Schüssler Fiorenza, In memoria di lei. Una ricostruzione femminista delle origini Cristiane (Claudiana, 1990).
Giulia Sissa, L’errore di Aristotele. Donne potenti, donne possibili, dai Greci a noi (Carocci, 2023).
Rousseau, Emilio (Laterza, 1999).
Obrigado por este artigo, que acho muito bonito. Apenas duas notas de comentário.
1) A primeira quer sublinhar a seguinte passagem: “O curto tempo do discipulado de iguais, subversivo em relação às estruturas familiares e culturais judaicas tradicionais dominadas pelo patriarcado, não durou mais do que uma geração. A institucionalização da Igreja coincidiu com sua adaptação à ética greco-romana”. A esse respeito, talvez seja possível exemplificar lembrando que a figura de Maria de Magdala, que tem tanta importância nos relatos do Evangelho sobre a ressurreição de Jesus, desaparece nos outros escritos neotestamentários. Não apenas em relação a papéis de responsabilidade, mas tout court. Isso assinala que cesuras e censuras em relação à práxis jesuana foram realizadas quase imediatamente, e já nas décadas e nos lugares em que as Escrituras neotestamentárias ganharam forma, sem que, no entanto, tenha sido possível apagar essa práxis completamente. Certamente, justamente por isso, segundo o clássico critério do “constrangimento”, esses relatos devem ser levados a sério; mas acho que é importante enfatizar a dívida de gratidão em relação a figuras como a de Cady Stanton, pelo fato de ela ter evidenciado “as dobras androcêntricas da história da redação e da tradição dos textos bíblicos, o acentuado androcentrismo ativo na formação do cânone e em muitas traduções, além da organização patriarcal das instituições religiosas e do nosso próprio modo de pensar, de viver e de crer”.
2) No que diz respeito ao campo editorial católico contemporâneo, sugiro universalmente a leitura do ensaio teológico (nem pretendo usar as aspas ao escrever “teológico”) “God save the queer” (mais do que “Ave Mary”) de Michela Murgia, não por acaso com posfácio de Marinella Perroni. Até mesmo o católico “muito mais do que médio”, por assim dizer, poderia se surpreender, acima de tudo por um ponto de vista prospectivo, em relação a questões cuja evidente natureza problemática talvez pudesse saltar aos olhos até agora apenas recorrendo a alguns filões da literatura especializada. E aqui, em vez disso, temos um ensaio ágil, curto e universalmente compreensível, precisamente porque não é especializado, mas também nada banal ou malfeito.